quarta-feira, 24 de novembro de 2010

PARTE VII: ELEMENTOS BÁSICOS DE UM TEXTO FICCIONAL

Quando lemos um texto ficcional, é comum nos atermos a dois elementos básicos: enredo e personagem.

Enredo é o que se conta na história, são as complicações, os acontecimentos, enfim, a invenção do autor, a trama, a habilidade em apresentar os fatos dentro de uma certa ordem.

Personagem é a figura humana (ou humanizada, dizemos antropoformizada) que aparece na história.

No entanto, o que nós guardamos na memória, depois de termos lido, não é normalmente o enredo. Se nos lembramos de um filme, uma telenovela, uma peça de teatro ou um romance que lemos (ou que vimos),o que fica em nossa memória são as (ou os) personagens.

Então, personagem é uma figura importantíssima numa história. Mas por que isto acontece?

Uma das explicações mais plausíveis para o fato de lembrarmos as personagens é que a personagem se aproxima imediatamente da pessoa, na verdade se parece muito, e como nós, leitores, nos reconhecemos como pessoas, esta identidade é quase natural, isto é, espontânea.

Pessoa é o que somos para os outros. Os outros sempre fazem de nós alguma coisa, dizem que somos altos ou baixos, feios ou bonitos, se somos generosos ou egoístas. Enfim, elas nos atribuem identidades, nos designam papéis, que representamos como atores sociais. Como vivemos diferentes realidades, em diferentes grupos e atravessamos vivências pessoais diferentes, nós somos sempre pessoas plurais e inesgotáveis.

As personagens, no entanto, são seres de papel, não têm vida como nós temos, são atribuições de alguém a partir da linguagem, são substantivos, adjetivos, pronomes, verbos, isto é, categorias gramaticais, mas nosimitam em nosso modo de ser, parecem conosco, agem como nós, com uma diferença fundamental: enquanto as pessoas são inesgotáveis, as personagens são congeladas. A personagem é congelada na história, são sempre as mesmas palavras que a designam, ao contrário das pessoas que sempre podem mudar. Personagem é para sempre, pessoa não.

Porém, por que a personagem é tão decisiva na construção de um filme, de uma novela ou de um romance? É que a personagem, porque é um ser imutável, não está submetida ao tempo, não pode mudar, não pode nos surpreender, e isto permite que se volte sempre a ela, refletindo com calma sobre o seu significado, sobre sua maneira de agir.

Então, enquanto as pessoas agem sempre sem poder controlar exatamente todas as conseqüências se seu agir (chamamos isto de livre-arbítrio), as personagens podem ser interpretadas e podem nos indicar algumas regras, algumas características, alguns procedimentos, no que convencionamos chamar vida real.

As personagens são construídas para representar atitudes humanas. Por exemplo: Capitu, de Machado de Assis, pode estar associada ao ciúme, à intolerância, à injustiça; Riobaldo, de Guimarães Rosa, costuma simbolizar a sabedoria do homem simples que nos dá lições de vida; Aurélia, de José de Alencar, pode representar a luta pela emancipação da mulher, etc..

Mas nem sempre pessoa e personagem estão próximas (chamamos de realismo quando esta aproximação é muito grande). Pode ser que o autor pretenda construir uma alegoria, nesses casos, a personagem pode tomar formas bem diferentes da forma humana e serem construídas de modo surpreendente (chamamos absurdo este tipo de construção).

Por exemplo, Kafka, um dos mais importantes autores do século XX, construiu uma personagem chamada Gregor Samsa que se transformou em um enorme inseto no romance chamado Metamorfose.

Esta personagem é um alegoria de uma situação complexa no mundo.

Se se reparar bem, as personagens dos contos de fada são também absurdas, se comparadas às pessoas.

Por fim, deve-se compreender que pessoas são prisioneiras do tempo e do espaço, estão submetidas ao peso das convenções, da gravidade, têm peso e massa, são, portanto limitadas em seu espaço, embora possam sempre nos surpreender; ao passo que as personagens, embora construídas de palavras, são produtos da livre imaginação de alguém, representam valores éticos, verdades, qualidades que nos ajudam a compreender o enigma da vida e jamais deixam de ser como foram escritas, exceto para nossa interpretação.

Elas existem porque nós temos sempre um excesso de vida e, como disse uma vez um grande escritor francês chamado Albert Camus, se o mundo fosse claro, a arte não existiria.

Outro aspecto importante é o herói do enredo. Neste caso, falamos de vários tipos de heróis.

Para bem se compreender, vamos começar pelo herói moderno ou problemático (categoria definida por um filósofo húngaro chamado Georg Lukács) é preciso, antes, entender as novas funções da ficção literária, em especial do romance, a partir da modernidade, para nós, a partir do século XVI.

O romance passa a ser a história de uma investigação sobre a autenticidade do mundo, isto é, a idéia moderna de que o mundo é um lugar demoníaco, porque obriga o homem a perder seus valores verdadeiros e autênticos, como a lealdade, a coragem, a fidelidade, a temperança, a solidariedade, valores que construíram o herói clássico.

Sendo o romance moderno um tipo de ficção que se caracteriza por representar uma ruptura insuperável entre o herói e o mundo (moderno), segue-se que aquele – o herói – permanece numa espécie de luta interna entre a busca da superação dos obstáculos (como o herói clássico) e sucumbir ante as regras de um mundo movido pelo interesse, cujas normas são devastadoras.

O herói moderno (problemático) por ser incapaz de superar esta contradição torna-se demoníaco. São heróis loucos, criminosos, melancólicos, cínicos, sempre problemáticos, porque desajustados, cuja busca degradada, e por isso inautêntica, dos valores autênticos num mundo de conformismos, convenções, falsa moral, constitui um novo tipo de personagem do romance, que os teóricos chamam romance moderno.

Então, o que caracteriza este herói moderno (ou problemático) é que, incapaz de compreender ou aceitar a lógica de um universo formado a partir da cultura pequeno-burguesa, conservadora, reacionária, vitoriana, com seu mundo inautêntico feito de hipocrisias e conveniências, ele se rebela, não no sentido de uma transformação de valores, mas uma rebeldia surda, feita de loucura, solidão e mágoa.

Em resumo: o herói moderno ou problemático é o personagem de uma história de uma busca degradada por valores autênticos, num mundo decadente, por isso um mundo que se tornou desumano e desencantado.

Se para o herói clássico o mundo é um lugar habitado pelo deuses, portanto um espaço sagrado, e seu papel é merecer a heroicidade por meio de ações extraordinárias, para o herói moderno o mundo é um lugar demoníaco e degradado, onde os deuses já não mais habitam e ele, o herói moderno, sente-se intruso, por isso é problemático.

Já o anti-herói é a tentativa de se construir um personagem para o qual o mundo é um lugar absurdo, sem sentido, e ele não é capaz de nenhum ato, nenhuma ação, apenas é um espectador passivo, um objeto sem finalidade.

O anti-herói é uma espécie de extensão do herói problemático, é a metáfora do homem comum que se sente impotente frente a um mundo absurdo, sem finalidade.

Sigamos este pequeno trecho de Graciliano Ramos, em seu romance Angústia.

Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios.

(...)

Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição. Um sujeito chega, atenta, encolhendo os ombros ou estirando o beiço, naqueles desconhecidos que se amontoam por detrás do vidro. Outro larga uma opinião à toa. Basbaques escutam, saem. E os autores, resignados, mostram as letras e os algarismos, oferecendo-se como as mulheres na Rua da Lama.

Nenhum comentário:

Postar um comentário