quarta-feira, 24 de novembro de 2010

PARTE IV: O TEXTO POÉTICO

Finalmente, os textos que nos dizem respeito: os poéticos.

Os leitores do texto literário, quando sabem que estão perante este tipo de escrita, precisam, como atitude inicial, promover uma espécie de suspensão de julgamento, ou, como escreveu o poeta inglês a quem já nos referimos suspension of disbelief.

Por que esta atitude inicial é decisiva para a leitura poética? Porque a literariedade do literário é validada pela sinceridade com que nós, leitores, nos entregamos à lógica do texto, como aceitamos o mundo autotélico proposto pelo autor.

Sabemos, pelo senso comum, que de nada adianta cobrar verdade da ficção, porque se trata de uma outra estrutura de realidade, sobretudo se esta verdade é produto da adequatio e não da desvelação.

Aristóteles, como dissemos, escrevendo sobre este problema, cunhou a categoria verossimilhança, que remete a um território difuso entre o real prático e o real imaginado.

No conceito de verossímil, reside a tensão própria da verdade poética, portanto literária. Tensão justamente porque o texto literário nos joga no mundo das contradições, da polemos, entre o que é e o que poderia ter sido.

Se alguém aqui imagina a literatura como um confortável lugar de descanso, esqueça.

Podemos, pois, assumir que, quanto mais literário, mais ambíguo, mais exposto às tensões entre o que é e o que poderia ter sido.

Eis aí a primeira marca do poético: quanto mais agudamente problematizador do que é, mais verdadeiramente poético.

Então, a leitura poética é a leitura do que não está dito, do residual, da tensão, da elipse.

O leitor da literatura necessita, portanto, retomar algumas categorias estritamente poéticas com que o literário emerge, no contexto da literariedade.

PARTE V: HABILIDADES GERAIS DE LEITURA DO POÉTICO

No exercício destas prerrogativas, duas exigências, ou melhor, duas habilidades, se fazem importantes:

PENSAR DUPLO

É da natureza da linguagem este duplo pensar. Neste sentido, toda literatura é uma grande metáfora, uma comparação entre possíveis mundos e nossa habilidade, enquanto leitores da literatura, que consiste justamente em viver esta tensão.

LER OS VAZIOS DO TEXTO

Todo texto verdadeiramente literário ,ou poético, sugere, muito mais do que diz. A ambigüidade, as alusões, as preterições consistem em um jogo de linguagem capaz de permitir ultrapassar os limites da própria linguagem, como nos indica Wittgenstein, e daí construir mundos.

Albert Camus escreveu, certa feita, que se o mundo fosse claro, a arte não existiria. Observem como ele, de algum modo, repetiu os gregos, partindo do conceito de que o mundo, por mais belo e racional que pudesse parecer, é ainda a morada de um certo mistério, do SER, de que nos esquecemos faz mais de três mil anos e que, para eles, estava logo ali, ao alcance dos sentidos.

Permitam-me agora uma reflexão à margem do que vimos tratando e que nos iluminará o caminho.

Mas, quando lia, os olhos divagavam pelas páginas e o coração penetrava-lhes o sentido, enquanto a voz e a língua descansavam. Nas muitas vezes em que me achei presente – porque a ninguém era proibida a entrada, nem havia o costume de lhe anunciarem quem vinha – sempre o via ler em silêncio e nunca de outro modo. (Confissões)

Foram essas as palavras com que Agostinho de Hipona, por volta do ano 400 d.c., descreve o espanto de surpreender Ambrosio, seu mestre, lendo em silêncio.

É a primeira vez que se registra a possibilidade de existir alguém interior para quem se pode ler, do mesmo modo como só se lia em voz alta. A leitura silenciosa estava sendo inaugurada e com ela a possibilidade de uma comunicação da interioridade, que os antigos não conheceram muito bem.

Agostinho escreve um belíssimo livro – Confissões – que é uma espécie de crônica da consciência e certidão de nascimento de um EU, de uma subjetividade, que é uma invenção do ocidente.

Mas, ao mesmo tempo em que se maravilha com a possibilidade de existir uma voz interior, Agostinho percebe também a impossibilidade da plenitude, porque este EU, que registra uma narrativa no tempo, também constrói uma tragédia: é que jamais seria possível a completa harmonia entre o eu interior, a paisagem interna, e o mundo exterior, as coisas. Estava para sempre fraturada a harmonia entre o nome e as coisas que o duplo pensar revela, se é que em algum dia existiu esta recôndita harmonia.

O espanto de Agostinho é um sinal desta cultura ocidental trágico-moderna. Porque há um terrível descompasso entre o que somos para nós mesmos, estas figuras da subjetividade, o sonho, a fantasia, os desejos, a idealização, o mundo interior e a dura lei de que somos para os outros: a lei, a ordem, as marcas do superego, para falar como Freud.

E imaginamos um dia, no período romântico, que a formação, a Bildung iluminista, seria a possibilidade do triunfo do homem educado, civilizado pela arte, pela estética, sobre a barbárie da ignorância.

Na fala cotidiana ouvimos: cair na real. Existe aí uma sabedoria: o real é um lugar onde se cai, ou decai, ou desmorona. Aí está a origem da tensão fundadora do literário.

No entanto, vale a pergunta: devemos desistir do sonho de ver triunfar a delicadeza do poema, a sutileza da arte, a magia do teatro, a graça do humor sobre a realidade pura e dura? Devemos abandonar a perspectiva de reconstrução do sonho romântico de emancipar o indivíduo a partir do culto da beleza estética? Não vale a pena apostar no potencial construtivo da obra de arte, em todas as suas expressões? Devemos abandonar o projeto civilizatório de superar a morte, eliminar a dor e viver com a beleza?

É disso que se ressente a noite em que mergulhou o ocidente da cultura. Todos os que comungam do mesmo sonho de ver triunfar a vida como obra de arte estão misteriosamente prenunciados no discurso de Agostinho de Hipona. E depois repetidos no verso de Keats: a thing of beauty is a joy forever.

Fiz este breve desvio para ilustrar os desafios que enfrentamos, nós, professores de leitura, numa sociedade que vem se tornando pós-letrada.

Acho que já podemos ampliar um pouco mais nossa reflexão no sentido de estabelecer, ainda que esquematicamente, algumas habilidades básicas para a formação do leitor. Afinal, tudo o que pretendi ser na vida, agora que Deus vem me punindo com a senectude, foi ser um professor de leitura. Leitura em sentido amplo, como falamos em ler um livro, ler uma sinfonia, ler uma pintura, ler um filme.

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