quarta-feira, 24 de novembro de 2010

PARTE II: A PROPOSTA

Chama-se leitura poética a leitura criativa de um texto, no sentido de que autor e leitor se completam e o exercício da leitura é sempre um trabalho cooperativo, mediado pelo acervo de vivências que unem leitor, texto e autor.

Há uma regra básica para o leitor que se utilize da leitura poética: em um texto poético nenhum dos leitores, nem o autor, leitor privilegiado, detêm o monopólio da interpretação.

É necessário, no entanto, entender bem o termo poético, em seu sentido original, na fonte clássica. Poético se refere ao verbo poien que, entre os gregos, significava algo próximo a fabricar, transformar, transmutar. Para expressar o sentido de transformar um coisa em outra, havia também o termo techne, cujo sentido é diferente, sem a profundidade do termo poiesis, porque já se referia ao mundo objetivo e não à economia simbólica da obra de arte.

Com techne os gregos queriam descrever qualquer habilidade no fazer e, mais especificamente, uma espécie de competência profissional oposta a uma capacidade instintiva ou mero acaso. Já para a palavra poiesisadmite-se uma conotação ética, referente ao comportamento humano, à produção de sentido em face de valores abstratos como o terror e a piedade, fundamentos da tragédia, por exemplo.

Ora, no mundo do sentido poético clama-se pelo original e pelo originário, por conseguinte pelo que os gregos designavam como o princípio, como physis, palavra próxima à natureza ,mal traduzida, mas que vale em três sentidos: a natureza natural, a natureza humana e a natureza das coisas. Assim, assumimos, até hoje, o idéia de que há um princípio inicial para todas as coisas, mas para os pensadores gregos, este princípio era dinâmico, referia-se a uma espécie de emergência , do mesmo modo que a vida retoma seu curso nas flores, nas plantas, com uma força inevitável.

Interpretar tem a ver com a physis, na medida em que o sentido do texto emerge como uma força originária, revelando o que se oculta a nosso olhar desarmado. Abrir-se a esta verdade é uma espécie de physis.

Uma das frases mais esclarecedoras a este respeito foi escrita por Eduardo Portella quando escreveu que a mimesis é a physis da literatura. Isto quer dizer que literatura emerge no mundo da representação do vivido e do a viver.

Em termos mais diretos: existe sempre um componente de mediação no texto literário e que será objeto de uma negociação entre o escrito e o lido.

Um texto é, portanto, um objeto em construção. Nada se pode dizer de um texto se não for produto de um Hermes, um deus da mediação, da negociação, de enunciação angélica da novidade revelada, interpretada. Trazida entre os homens, assim como a verdade, segundo Sócrates, está entre os homens. Quem sabe em sua práxis.

Nesta linha de argumentação, poético quer dizer o que se desdobra do princípio das coisas, a volta ao originário e ao original. Por isso, a leitura poética é um exercício de retorno ao originário/original, que também se relaciona com o conceito de verdade entendida como o que se oculta a nosso olhar, e não como adequação entre o intelecto e as coisas. Cabe ao poético a tarefa de realizar o des-velamento, cabe à literatura a tarefa de ser anunciadora do sempre novo.

Cabe, porém, ampliar nossa discussão para algo mais formal e talvez um pouco mais didático.

Sabe-se que o sentido de um texto é uma reconstrução na qual o tempo e o espaço (a distância entre texto e leitor) desempenham importantes funções esclarecedoras dos sentidos. A proximidade, a contemporaneidade, a distância temporal e espacial do texto fazem parte da estrutura do sentido que se pretende resgatar no esforço da leitura.

Daí e existência de três instâncias fundadoras da construção do sentido. A primeira, situada antes da presença do texto explícito que poderemos denominar de pré-texto, seguindo a lição de Eduardo Portella em seuFundamento da Investigação Literária.

Os elementos do pré-texto constituem as bases de uma teoria da intencionalidade, porque são aspectos da práxis do autor, isto é, sua biografia, seu espaço social, ambiente histórico, leituras realizadas, enfim, tudo aquilo que constitui um conhecimento capaz de se acrescentar ao entendimento do texto mas que não é relevante senão em vista do que está inscrito no texto do autor, não importa os níveis de consciência.

O pré-texto é prévio, mas é também concomitante, porque só concomitantemente pode ser prévio e porque forma um aspecto do contexto. Como se sabe, o contexto determina uma parcela importante dos jogos de linguagem e, por conseguinte, do sentido.

A segunda instância é o texto enquanto presença explícita, concentrado numa língua de cultura, articulador dos fatos e recursos desta mesma língua. É o momento propriamente formal e constitui as teorias da imanência. O texto é a realização formal das possibilidades de uma língua, transformada em literatura, por meio de recursos estilísticos e que depende, é óbvio, das habilidades do autor enquanto produtor e articulador de uma gramaticalidade.

É evidente que nossa capacidade de ler e de usufruir do prazer do texto está imediatamente vinculada à percepção que temos, na condição de leitores, de apreciar o jogo de linguagem articulado pelo artista. É este ir-além-da-língua, esta transgressão, ou esta trapaça, como dizia Barthes, que permite a existência do literário.

A terceira instância é, ao mesmo tempo, mediadora e conflitiva. De posse da nossa leitura, da leitura de cada um, abre-se o espaço do dialogismo entretextual. Portella considera este momento como o entretexto, isto é, um espaço de conflito e de tensão entre a verdade do leitor e aquela do texto. Mantenho a mesma denominação utilizada por Portella, esclarecendo que se trata de uma tensão criativa e fundadora, porque é o momento da subjetividade, da formação dos juízos práticos, na formulação kantiana. É aí que o texto vive e revive, porque é submetido ao rigor da comunidade de leitores, do espaço público, da crítica, das instâncias legitimatórias do literário. No entretexto é que se decide o destino e a vida de uma obra literária.

Neste sentido, quando um autor produz, ele faz uma aposta com o futuro. A obra será ou não legitimada a partir de situações imponderáveis que só o devir pode esclarecer. A obra de Machado de Assis se tornou clássica e tem sido capaz de oferecer uma ponte entre o passado e o futuro. Centenas de outros escritores ficaram pelo caminho do esquecimento e não foram capazes de escrever o futuro. Porque isto acontece constitui o admirável mistério da existência de nossa atividade humana. No entanto escrevemos, mal rompe a manhã, mesmo sabendo que menos de 1% dos escritores sobreviverão a este crítico implacável que é o tempo.

PARTE lll: O TEXTO LITERÁRIO

Um texto, sobretudo artístico (isto é, com intenções literárias) é tanto mais poético quanto mais profundos são os seus variados sentidos, daí a inesgotável capacidade de interpretação de que um texto é portador. Há, por conseguinte, no texto poético, uma infinidade de possibilidades de leituras, uma polissemia, por isso pode-se dizer que uma obra verdadeiramente poética é uma obra aberta e que seu sentido nunca está pronto, é uma operação solidária de construção de sentidos.

O leitor do texto literário depara-se, freqüentemente, com o desafio (e o prazer) da interpretação, por isso ele é um leitor especial, porque não lida com uma única e específica verdade, mas com várias possibilidades de construção da assim chamada verdade do texto, ou, tecnicamente, verdade poética.

A grosso modo, costuma-se deparar, hoje, com três tipos de textos que o leitor busca interpretar e, conseqüentemente, interrogar acerca da validade deles.

Pensamos inicialmente nos textos que se sustentam na verdade da ciência, isto é, aqueles textos que costumam ser definidos como científicos. Nesse caso, o leitor tem a tendência a interpretá-los a partir de certas estruturas argumentativas atribuídas à ciência. São textos validados pelo conjunto do conhecimento científico, portanto dependem, para sua adequada interpretação, da verdade científica. Esses textos não podem ser polissêmicos, ao contrário, devem ser denotativos, referenciados no sentido de situações exteriores à linguagem do texto, fora, portanto, de seu conteúdo semântico. Nesse caso, o texto normalmente funciona como legenda para algo que se quer demonstrar e que já se encontra no exterior, isto é, fora do universo de significação do próprio texto. O que se preserva, neste caso, é o caráter pragmático do texto, sua eficácia comunicativa ou argumentativa em face dos paradigmas nos quais se baseia. É um efeito demonstrativo.

Os textos ditos científicos, no sentido aqui exposto, não têm finalidade em si mesmo, não são autotélicos, porque demonstram fatos ocorridos na exterioridade, tanto na natureza quanto no mundo objetivo das coisas ou dos conceitos. O que não quer dizer que não sejam interpretados.

Em seguida, podemos considerar os textos que sustentam certos valores de ordem prática, isto é, textos que se referem a algum tipo de verdade de fundo moral ou ético, que têm a ver com o comportamento dos indivíduos e da vida social. Nesse caso, o que lhes dá validade é um certo sentido de justiça e de retidão (fazer a coisa certa), que os leitores costumam desenvolver a partir do mundo-da-vida, do senso-comum, do patrimônio moral vigente ou das ideologias.

Alguns desses textos, por exemplo, sob o título recente de “literatura de auto-ajuda”, vêm se tornando muito populares, não porque expõem verdades científicas, mas porque despedem conceitos supostamente religiosos, espiritualizantes, supostamente místicos, que estão, na realidade, ainda circunscritos à metafísica clássica e que, submetidos à pressão do mercado, se transformam em literatura empobrecedora da experiência humana, o que é uma contradição, reduzindo o espaço simbólico das vivências, simplificando o que de natureza é complexo: o outro.

Também nesse caso a leitura poética é inaplicável, na medida em que esses textos não permitem uma leitura aberta, isto é, isenta de paradigmas pré-estabelecidos.

No entanto, em certas circunstâncias, esses textos podem situar-se na fronteira do poético, em especial aqueles textos que se abrem para a exegese bíblica ou jurídica, admitindo outras interpretações e novos exercícios de desvelamento. Caso escapem da banalidade do mercado (best-seller não é uma categoria literária, mas mercadológica) podem revelar alguma poesia, mas aí eu desconfio que não será mais de auto-ajuda. Nem de nenhuma ajuda que vem do alto.

O problema é que, apesar da relativa abertura, essas exegeses têm limites estreitos, sobretudo quando as interpretações estão submetidas ao dogma ou ao cânone. É o caso clássico da jurisprudência e das teologias que mais escondem do que revelam.

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