quarta-feira, 24 de novembro de 2010

INTERPRETAÇÃO DE TEXTO LITERÁRIO


PARTE IX: DIFERENÇAS ENTRE AUTOR E NARRADOR

Do mesmo modo que pessoa e personagem mantêm semelhanças e diferenças, também o autor e narrador.

De grosso modo, podemos dizer que autor corresponde à pessoa, porque é uma entidade física do chamado “mundo real”, isto é, uma pessoa física. Já o narrador é uma figura da ficção, quer dizer, é uma voz que conduz o enredo, não tem, portanto, existência física, não é pessoa, é personagem.

Pois bem, se o narrador é quem nos conta uma história, quem conduz o fio narrativo, ele pode se colocar em diferentes lugares, em diferentes pontos-de-vista. Do mesmo modo que nós podemos nos perguntar sobre o lugar de uma pessoa quando ela nos conta um fato qualquer.

Assim, podemos ter:

SITUAÇÃO

AUTOR / PESSOA

NARRADOR / PONTO DE VISTA

1

Eu conto um fato que aconteceu comigo

Narrador em primeira pessoa (EU) ou intradiegético ou narrador-personagem

2

Eu conto um fato que me contaram ou que eu soube, mas não aconteceu comigo

Narrador em terceira pessoa (ELE) ou extradiegético ou “onisciente”

Esta classificação é meramente esquemática. O que acontece, de fato, é que as relações entre o narrador o que ele conta (matéria narrada) podem sofrer uma série de variações de modo que os pontos-de-vista acabam dependendo da estratégia do autor.

O importante é saber que o que se narra não é necessariamente o que se vive, mas o que se vive (na imaginação) é sempre o que se pode narrar.

Imaginemos que nosso leitor se envolve com a literatura de nosso tempo, sobretudo de Machado de Assis até agora. Neste caso, ele deverá assegurar-se dos conceitos de metáfora, de metonímia ,da ironia, que constituem as figuras básicas, o idioma da literatura ocidental contemporânea.

Os termos expressos anteriormente referem-se a uma propriedade fundamental de toda e qualquer língua que é seu caráter de duplicidade, como já anotamos.

As figuras, como se denominam aqueles três termos, só existem porque somos capazes de ir além da expressão imediata de uma referência qualquer, porque somos dotados da habilidade de ir além do que está dito ou escrito.

PARTE X: A DENOTAÇÃO E CONOTAÇÃO

Essa duplicidade na apreensão do sentido é conhecida como uma disposição entre denotação e conotação, descrita pela lingüística estrutural.

Por denotação entende-se um sentido aceito consensualmente pela maioria dos usuários de uma língua e que se torna fixada em suas formas dicionarizadas e independe, relativamente, dos contextos.

Por conotação entende-se um sentido basicamente contextual, portanto, particularizado e restrito, e que se refere a uma extensão que dizemos figurada.

De todo modo, as conotações é que permitem a profundidade do sentido, a renovação da língua e a recriação dos vários sentidos de um vocábulo. Sem esse dinamismo, as línguas morreriam.

Em certo sentido, metáfora, metonímia e ironia só existem porque podemos escapar da ditadura do sentido único, por meio das denotações, por meio de expansões em profundidade das conotações.

METÁFORA

Baseia-se numa expansão do sentido a partir de uma comparação não declarada, por meio de uma extensão de campos semânticos que guardam entre si algum tipo de afinidade aleatoriamente construída.

Tomemos o seguinte verso:

Fecha-se a pálpebra do dia.

Denotativamente, isto é, em sentido imanente, diz-se: o dia está acabando, ou o sol se põe, ou a noite começa, etc.

No sentido recuperado pela metáfora, a base do sentido encontra-se concentrada no termo pálpebra.

Somos levados a construir uma imagem para compreender a cena descrita.

A cena descrita refere-se ao pôr-do-sol. O poeta imaginou (isto é: construiu uma imagem) onde o sol parece um olho humano, daí o termo central da metáfora: pálpebra.

Assim temos:

SOL Þ OLHO Þ PÁLPEBRA

em que o sol é comparado a um olho humano.

Se não fôssemos capazes de compartilhar com o poeta a associação olho = sol, não seríamos também capazes de assimilar a metáfora. As metáforas só se constróem por assimilação analógica. São, portanto, em certo sentido, produtos culturais.

METONÍMIA-

Do mesmo modo que as metáforas, a metonímia também se baseia em uma afinidade ou comparação.

Tomemos a expressão popular:

Comi dois pratos.

Denotativamente, isto é, em sentido linear e plano, ninguém como pratos, o que se come é o alimento que está no prato. Ao contrário da palavra sol, que não tem relação direta e imediata com olho, prato e alimento estão em total relação de identidade. A palavra prato está sempre associada a alimento, não depende tanto da invenção de quem enunciou a frase mas de sua capacidade de repetir algo que já está dado.

A metonímia é, pois, uma metáfora sem imaginação, porque é óbvia demais.

IRONIA-

Também depende de um segundo sentido contido na expressão, a diferença é que, nesse caso, não é exatamente o modo de ler a expressão, mas o modo de enunciá-la.

Tomemos este exemplo:

Muito bonito o que você fez!!!

Se tomamos o termo bonito denotativamente, isto é, em sua forma dicionarizada, e em nosso modo de pronunciar a frase (enunciá-la), não há ironia. A ironia só aparece quando enunciamos o termo bonito de modo a ler o avesso, o contrário, do que diz sua denotação (isto é: bonito é lido como feio). Necessitamos, pois, alongar a vogal i.

No texto escrito, é indispensável apreender as marcas da enunciação (hipertextos) para poder ler a ironia. No caso acima, a interjeição marca a enunciação irônica.

Outras vezes, as marcas da enunciação dependem do contexto.

Pretendi, com estes exemplos, sugerir algumas estratégias para interessar novos leitores no mundo da literatura.

E assim, caminhamos para um possível final de nossa exposição.

Gostaria de convocar a palavra de Dante, com quem iniciamos esta palestra, em um dos mais comoventes episódios da Commedia e que tem como tema a leitura.

Trata-se do Canto V do Inferno em que Dante descreve o segundo círculo. Lá está Minos, Rei de Creta, que julga as almas dos pecadores. Ali são atormentados os voluptuosos, são punidos o ócio e o prazer, que foram os mais belos eventos de um século Alegre. Mas é também ali que estão Francesca e Paolo da Rimini, condenados por fratricídio e adultério.

Paolo e Francesca viviam na mesma casa, porém Francesca era mulher de Gianciotto, irmão de Paolo. No dia em que o marido se ausentara, Paolo, o belo e gentil poeta, sedutor, ao contrário do irmão, bruto, sanguinário condottiere, foi surpreendido no leito da cunhada. Morrem os três na luta que se seguiu. Todos, inclusive os amantes, vão para o Inferno. O tormento dos namorados consiste em girar suas almas, no espaço, sem jamais poderem se tocar. Podem apenas contemplar-se, quando passam próximos, girando em sentidos opostos. Que maior tortura, para quem vive um amor improvável, do que contemplar o amante sem poder tocá-lo?

Indagada por Dante como chegaram àquela situação, em razão de um amor ilícito, Francesca culpa o livro e a leitura. Diz ela, descrevendo a aproximação dos rostos dos amantes, enquanto lêem a mesma página:

Per più fiate li occhi ci sospinse

quella lettura, scolorocci il viso,

ma solo un punto fu quel che ci vinse.

(Nossos olhos, por vezes, se encontrando,

cessam de ler; a cor do rosto muda.

Foi daí que se marcou nosso destino.

E mais adiante:

(...)

la bocca mi baciò tutto tremante

Galleotto fu il libro e chi lo scrisse:

quel giorno più non vi legemmo avante.

(Beijou-me (Paolo) a boca, tremendo,

repetindo o que diz Galleotto em seu poema.

E nós dois não mais seguimos lendo...)

Assim o livro e o prazer. Viver, como escreveu Guimarães Rosa, é muito perigoso. A leitura também. Mas só vale a pena viver o que é arriscado.

Autor: Carlos Sepúlveda

Carlos Sepúlveda é doutor em letras pela UFRJ, pesquisador-senior do Colégio do Brasil, membro da Academia Brasileira de Filosofia, diretor da Faculdade da Região dos Lagos e professor titular da Universidade Veiga de Almeida.

Fonte: http://www.filologia.org.br/abf/volume3/numero1/03.htm

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