terça-feira, 14 de junho de 2016


Agora, uma crônica da minha autoria:

AMOR NO LIXO
Deusdélia Pereira Vilas Boas

          Manhã fria em São Paulo, no coração de São Miguel Paulista, Zona Leste da capital. Uma corrente gélida enfiava-se em meio aos fios tão bem urdidos do meu casaco e estremecia-me o corpo. Outro era o estremecimento da minha alma. Isso sim, naquele dia, mudaria minha percepção sobre o amor. A rua, já tomada pelo formigueiro humano de todo dia, obrigava os transeuntes a se apertarem diante de uma agência bancária. Não sei se contei que o fato ocorreu numa das avenidas mais movimentadas do bairro o que tornava turva a visão de qualquer observador sobre os episódios que realmente brotavam da multidão em trânsito por ali. 

Embora o intuito de cada indivíduo que tomara seu lugar na fila fosse, primeiramente, o de realizar alguma transação financeira, uma cena incrível me obrigou a uma leitura rápida ali mesmo, em pé, na barulhenta calçada. Todavia, o clima gelado não era empecilho para a fila que se esticava e tomava forma em frente a tal agência em São Miguel Paulista. A extensão de quase meia quadra evidenciava tanto a velha e tradicional fila da qual, dificilmente, o brasileiro poderia escapar como também parecia obra da providência: oportuno testemunho de um fato intrigante entre dois moradores de rua. Essa cena jamais seria apagada da minha memória leitora, inquieta e perscrutadora dos fatos. 

Mês dos Namorados, dos amantes, dos casados, dos mal ajuntados, dos estáveis e instáveis. Não importava que tipo de conjunção cada um admitisse... Mas a verdade é que resmunguei decidida para um colega, professor de Biologia:
- Dar-lhe um real? Jamais!! Levanto-me de madrugada, trabalho de aula a aula... Como? Um real para quê?
- Senhora, um real, por favor!! – insistia o morador mais novo daquele lugar. 

Novo pelo menos para mim que acabara de conhecê-lo e não gostara de forma alguma da abordagem econômica que me fizera tão cedo do dia - embora eu já estivesse acordada, pois me pusera a corrigir, desde as duas horas da madrugada, os textos dos meus escritores mais devotados, ou mesmos os daqueles a que obriguei ao intratável ofício. Um real... Esse era o valor que, pedia às pessoas, o mendigo dono da cama bem ali, diante do meu olhar inconformado. Cama dura, desarrumada, cercada de papelão, evidenciando a noite onde dormira recentemente o casal – fato que não perturbara meu espírito frio naquela manhã.

Apesar das evidências sobre nossa diferença social, decididamente, eu recusei a ouvir seu pedido. Afinal, quem em lúcida consciência sobre a vida, o estudo, o trabalho, a justiça, o esforço lhe daria um real? Certamente muitos se condoeram do homem mal vestido, mal agasalhado, mal interpretado, malquisto, mal apresentado, malcheiroso, mal tudo...

Continuava imersa nessas curtas reflexões tendenciosas, tentando dar significado à minha permanência naquela fila, pois, honradamente, conquistara meu salário, minha vida, minha amargura, meu pesar, minha indiferença...  E mais: sentia-me dona do meu destino, da minha completa indignação quando os vi a conversarem a poucos metros da fila. Não fora possível saber sobre o que falavam e continuei a entabular conversa com o colega sem insistir em entender qualquer ponto ou vírgula da prosa entre os dois, aparentemente desinteressada.

Não demorou muito quando vi o homem retornando com uma garrafa suja. De posse do objeto, a mulher entornou-o e de um gole só devorou o seu conteúdo. Foi exatamente naquele momento que me enxerguei pelo avesso. 

A mulher que, usava chinelos velhos para agasalhar os dedos sujos, voltou-se  para o pobre homem e puxou-o para junto de si, colando o seu corpo no dele, de forma que o céu tornou-se o seu teto iluminado, e deu-lhe um beijo cinematográfico.

Não sei se todos viram como vi. Mas, se eu não ganhara algum beijo naquela manhã, bem-aventurada era aquela mulher, porque soube retribuir o gesto do companheiro de sorte, parceiro da cama de papelão, amante das calçadas de São Paulo, cuja costela aquecia as suas noites frias.

E agora o beijo? Nossa! Ele nem percebeu que ela era banguela, nem reclamou da falta de perfume, muito menos do cabelo sem corte, sem escova, sem chapinha. Simplesmente deixou ser beijado por ela naquela manhã fria dos namorados. 

Não sei se tomada de inveja, de surpresa, de mal-estar social, fui obrigada a engolir a seco a verdade incontestável: os dois mereciam o dinheiro. Um real não era nada diante daquela demonstração de afeto, de amor... Portanto, o tal sentimento mostrou sua face magnetizada, vivaz, sem teto - porque ali - contando apenas com o céu por testemunha, ou melhor, comigo, aluna da maior lição: AMOR no LIXO – longe do lençol branco perfumado, da cama macia, do teto, das velas, dos jantares, dos presentes – AMOR no LIXO, simplesmente AMOR.

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