terça-feira, 6 de março de 2012

BUSCA DE VISIBILIDADE ÀS AVESSAS

A lei, a ciência e o bom-senso estão do lado do 'Houaiss'
Acreditar, como faz um procurador federal, que o dicionário dissemina preconceito ao registrar diferentes usos das palavras é tão absurdo quanto achar que, ao explicar o nazismo, livros de história referendam seu horror
Nathalia Goulart

De tempos em tempos, alguma autoridade de plantão é vencida pela tentação de tutelar a sociedade. Ela, então, tira do colete uma medida politicamente correta, que, embora nula, não raro descamba para a tentativa de censura. Foi assim em 2010, quando parecer do Conselho Nacional de Educação, órgão do Ministério da Educação, tentou banir das escolas públicas a leitura do livroCaçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Segundo os sábios do MEC, trechos como o seguinte expressariam racismo: "Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão." Nesta segunda-feira, foi a vez do procurador federal Cléber Eustáquio Neves cair em tentação, pedindo à Justiça Federal em Uberlândia (MG) que sejam retirados de circulação as cópias do dicionário Houaiss, um dos mais conceituados do mercado. A razão: no verbete cigano, o livro informa que a palavra pode ganhar também o significado – pejorativo, como bem destaca o próprio dicionário – de "trapaceiro, velhaco, burlador". Para o MPF, ao conter tal explicação, o dicionário ajuda a disseminar o preconceito contra os ciganos e a intolerância étnica, que afrontam a Constituição. É um raciocínio tão absurdo quanto achar que, ao explicar o que foi o nazismo, os livros de história referendam seu horror.

O pedido do procurador é, em todos os sentidos, descabido, concordam juristas, dicionaristas e o bom-senso. É, por exemplo, a opinião de Ophir Cavalcanti, presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB): "A alegação me soa exagerada. Não vejo amparo legal nessa questão", diz. "Abolir determinadas significações do dicionário é uma tentativa de cercear a liberdade intelectual, é privar a sociedade de conhecer a própria língua." O Instituto Antônio Houaiss, responsável pela edição do dicionário (publicado pela editora Objetiva), ainda guarda em segredo quais medidas irá adotar. Espera-se que reaja, que busque a Justiça.
A perplexidade dos dicionaristas – os especialistas que constróem essas obras monumentais – é semelhante. "Os dicionários registram as acepções das palavras, pareçam elas positivas ou negativas, pois esses são os valores que os falantes da língua atribuem a elas. E esses significados precisam estar documentados nos dicionários: esta é a função deles", diz a dicionarista Maria Helena de Moura Neves, da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
É exatamente essa função que o Houaiss cumpre ao registrar o uso pejorativo que pode ser dado ao termo cigano. De acordo com o livro, data de 1899 o uso da palavra para qualificar "aquele que trapaceia, velhaco, burlador". Ainda hoje, pode-se encontrar o mesmo emprego. Então, a dicionarista, lança uma pergunta retórica cuja resposta é demolidora para o pleito do MPF: "Se nos empenhássemos em registrar apenas as acepções positivas, teríamos um dicionário cor de rosa. Isso tornaria a sociedade menos preconceituosa ou injusta?" É quase desnecessário responder: não.
O procurador Cléber Eustáquio Neves poder perder sua batalha contra o Houaiss – a vitória da lei, da ciência e do bom-senso é o que se espera da Justiça, que ainda não tem data para julgar o caso.

 Mas o procurador já fez vítimas. Instada pelo MPF, a editora Melhoramentos já suprimiu das páginas de seu dicionário a acepção pejorativa do verbete cigano. "Fomos informados por meio da Justiça de que havia pessoas ofendidas com alguns dos nossos verbetes", diz Breno Lermer, superintendente da Melhoramentos. "Avaliamos que algumas definições pejorativas relativas acigano eram antigas e já não correspondiam à realidade. Acabaram suprimidas."

A decisão abre precedente. Se surgirem mais reclamações, é possível que mais acepções sejam retiradas do dicionário? Sim, confirma Lermer. "Se entendermos que eles já não encontram correspondência com a realidade, serão retirados." Estão, portanto, em risco as definições que informam, por exemplo, que o adjetivo judeu, em sua acepção insultuosa, designa a "pessoa usurária, avarenta", ou que baiano, em situação idêntica, é o "tolo, fanfarrão". São todos usos ofensivos, preconceitusos, não há dúvida. Mas tirá-los das páginas dos dicionários seria um desserviço: melhor deixá-los ali, prestando o precioso serviço de ensinar àqueles que recorrem ao livro que o mundo não é, como lembra Maria Helena de Moura Neves, cor de rosa.

As alterações almejadas pelo procurador são, já está claro, equívocos terríveis. "Hoje, a tendência é advogar em prol do politicamente correto. É uma patrulha sem fundamento linguístico", sentencia o dicionarista Francisco Borba, da Unesp. "Dicionários não são instrumentos ideológicos ou políticos. São obras objetivas, que registram a língua. Preconceito comete aquele que faz uso de acepções pejorativas em seu cotidiano, não o dicionário."
 FONTE: VEJA - 29/02/2012


OBS.: Cada vez que um leigo desconhecedor da língua se prontifica a dar opinião sobre algum aspecto da linguística, o desastre parece inevitável. Depois do barulhão ineficaz da imprensa contra o livro didático do MEC sobre as diferenças entre língua falada e escrita  que,  após as manifestações de linguistas renomados desse país, motivou aquela a emudecer (colocar a viola no saco - como afirma o jargão) - surge um jurista querendo falar do que desconhece. Seria o desejo de visibilidade na mídia de forma contrária ao mérito e ao bom senso?

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