domingo, 1 de maio de 2011

Leitura Formativa: Exemplo de argumentação


Sírio Possenti comenta as gramáticas

Há livros interessantíssimos de divulgação científica. Mesmo não sendo especialista, um leitor pode descobrir aspectos filosóficos de relevo no curso do desenvolvimento da ciência. Uma das lições mais óbvias é que a ciência avança destruindo erros.

Um caso muito curioso é a progressiva demolição do modelo ptolemaico do universo que, para explicar o movimento dos planetas (e outras coisas), precisava de regras complexíssimas. Copérnico e Kepler mostraram que um modelo bem mais simples explicava muito mais coisas (depois Newton deu um acabamento especial, com suas conhecidas). Mas, para funcionar - isto é, para ser compreendido - o modelo exigiu uma mudança fundamental de atitude: deixar de acreditar que a Terra está no centro do Universo (e que é plana etc.). Devia-se começar a explicar as coisas de outro ponto de vista, começando de novo, num certo sentido.

Pode-se dizer que ocorrem fenômenos análogos em relação ao estudo das línguas. A meu ver, muita gente não olha para a língua de um lugar errado. O equívoco mais comum diz respeito à natureza da gramática. Muitos acham que as gramáticas são conjuntos de regras que os gramáticos inventaram e que todos devem seguir (por isso se pede que eles simplifiquem as coisas...). Mas ela é uma coisa completamente diferente. Ela não está no começo deste ciclo. Antes das gramáticas vêm os escritores (ou os falantes). Assim, uma gramática informa quais são as regras que os escritores seguiram, e não as que devem seguir. Os gramáticos descobrem as regras analisando dados, que são os textos dos escritores - assim como os astrônomos descobrem regras observando o céu...

Esse exemplo mais típico só vale, é claro, para sociedades em que se escreve. Naquelas em que não se escreve, fazer uma gramática significa observar como os falantes falam e procurar organizar as regras que explicam o que eles fazem quando falam (se todos dizem o boi, a mãe, a casa, o bobo etc. o gramático dirá que o artigo vem antes do nome).

Supor que as regras da língua são inventadas pelas gramáticas e impostas aos escritores e aos falantes seria como imaginar que um astrônomo define a órbita dos astros e que estes são obrigados a segui-la (sob pena de serem reprovados ou considerados errados).

Se entendemos as gramáticas olhando daqui para lá e não de lá para cá (da língua para a gramática e não da gramática para a língua), então podemos pensar que uma língua como a nossa permite construir diferentes gramáticas - da língua escrita e da falada. É que os escritores não seguem sempre as mesmas regras. Não só elas variam em séculos diferentes, mas mesmo em gêneros diferentes na mesma época. Escritores realistas não escrevem como os românticos, os romancistas não escrevem como os poetas, e nenhum deles escreve como os tabeliães e os bioquímicos.

Não só se pode fazer gramáticas da modalidade falada de uma língua, como se pode fazê-las de todas as suas variedades, nas diversas regiões de um país. Mattoso Câmara, por exemplo, descreveu a fonologia do português culto falado informalmente no Rio de seu tempo. Observando os dados, pode-se descobrir (este é um fato tão observável quanto as mudança das fases da lua) que muita gente diz pra mim ler, mas que ninguém diz mim vou ou mim vai.

Descobrindo fatos como esse, observado sistematicamente (mim nunca é sujeito em orações iniciais; só em subordinadas, e depois de para), pode-se tentar explicá-lo, assim como os físicos tentam explicar por que a bola é mais rápida a 4000 metros de altitude do que ao nível do mar (aliás, os físicos acham esquisito que os narradores de futebol digam que, quando a bola quica, sua velocidade aumenta, porque, não havendo outro impulso - outra força que impulsione a bola -, a velocidade não pode aumentar. Mas os narradores continuam dizendo a mesma besteira - como dizem outras sobre língua...).

Se entendêssemos que os fatos linguísticos são simplesmente fatos, e que o papel das gramáticas é explicá-los, não diríamos mais que as pessoas falam errado, ou que falam de qualquer jeito. Melhor: entenderíamos que, quando dizemos que uma pessoa fala errado, operando em dois níveis de avaliação: a) o nível gramatical - que descreve as regras; b) o nível social e/ou histórico, segundo o qual ter um determinado comportamento linguístico é certo ou errado. Ficaria claro que esse critério é social e/ou histórico, e não gramatical.

Esse critério deixa claro que certas construções, que já foram consideradas corretas, não o são mais. Por exemplo: pessuir foi a forma antiga do verbo possuir; Camões escreveu o mar que dos feos focas se navega, mas, hoje, escreveria o mar que é navegado pelas focas feias, porque, hoje, foca é feminino e não ocorrem mais passivas com de (deixo de comentar o se); hoje, a preposição é por.

Uma nota sobre a escrita, para esclarecer outro aspecto: entenderíamos muito melhor o que se faz no mundo da escrita se, em vez de condenar ou aprovar determinadas formas, observássemos o que acontece. Um dos fatos é o seguinte: as editoras (e as redações de jornais) têm seus próprios manuais, que ora são mais ou ora menos parecidos com as gramáticas, mas nunca são iguais. Uma editora precisa tomar cuidados especiais quando faz revisões, porque não é a mesma coisa revisar um livro de história, um de poesia e um romance. Já imaginaram corrigir a sintaxe de Dalton Trevisan (para nem mencionar Guimarães Rosa)?

Pensemos no exemplo do jornal, uma espécie de microcosmo do mundo da escrita: quem redige um editorial se obriga a seguir mais rigorosamente um padrão ideal do que quem escreve fofocas. E quem redige os pequenos anúncios não pode escrever certo. Este deve escrever assim: Cond. Fech Chac nova 3st sl3 ambs churr. Pisc qd tênis, mini-cpo, 1500m²terr, alto, plano R$70mil entr, saldo 36x ac. autoimov. SP ou ABC (é um anúncio real, que copiei de um jornal bem conservador!).

Com um novo olhar, compreenderíamos muito melhor o que é uma língua e como ela funciona numa sociedade. Esqueceríamos, por serem inadequados, critérios exclusivos do tipo pode não pode ou certo errado. Talvez, fôssemos mais bem sucedidos até mesmo nos projetos escolares. As ênfases mudariam, os resultados seriam muito mais interessantes.

O leitor, imagine agora, que ainda achamos que a Terra está no centro do sistema e que as coisas queimam porque liberam flogisto. Pois bem: ainda estamos estudando as línguas com essa cabeça.

PS:
a) Dizer que a pronúncia muyé existe não é a mesma coisa que dizer que é válida. Mas o que quer dizer exatamente pronúncia válida? Autorizada? Por quem? Em qual contexto? Quem não conhece Cuitelinho, cheio de formas análogas? E não me venham dizer que não é uma letra válida...

b) Um leitor escreveu que não se diz os brasileiros vão votar. Não se diz significa não se diz (uma construção que não ocorre) ou não se deve dizer?

c) Dizer que, em Está cheio de meninos na praia, cheio concorda com no local, como escreveu um leitor, é cometer dois erros: 1) no local não está na oração; 2) no local é um locativo, e, como tal, não recebe concordância...

d) Lula igualou presos comuns a presos políticos. Ficam pegando no pé dele por questiúnculas de concordância, quando o grave são certos raciocínios que o presidente produz, com falhas lamentáveis. No caso, compara o incomparável. Faz uma analogia insuportável. Não sei se ele se dá conta. Se sim, é imperdoável. Se não, é imperdoável.

Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.

Sugestão temática: Eva de Mercedes


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