domingo, 30 de abril de 2017

FOCO NARRATIVO


 TIPOS DE NARRADORES 

1. Narrador-personagem (protagonista ou testemunha):

A boca, no papel

O garoto da vizinha me pediu que o ajudasse a fazer (a fazer, não, a completar) um trabalho escolar sobre a boca. Estava preocupado porque só conseguira escrever isto: ‘Pra que serve a boca? A boca serve para falar, gritar e contar. Serve também pra comer, beber, beijar e morder. Eu acho que a boca é um barato’. Queria que eu acrescentasse alguma coisa.
- Que coisa?
- Qualquer coisa, ué. Escrevi só quatro linhas, a professora vai bronquear.
- Mas em quatro linhas você disse o essencial. Para mim, só faltou dizer que a boca serve também para calar. Em boca fechada não entra mosquito.
- Isso não dá nem uma linha - e os olhos do garoto ficaram tristes. - Por favor, me ajude…
Então resolvi fazer a minha redação, como aluno ausente do Colégio Esperança, e passá-la ao coleguinha, a título de assessor de emergência.
A boca! Tanta coisa podemos falar sobre a boca, mas é sempre por ela que falamos dela. Até caneta e o lápis são uma espécie de boca para falar sobre a boca. Eles vão riscando e saem as palavras como se saíssem por via oral. (Risquei a expressão “por via oral”. É muito sofisticada, ninguém vai acreditar que fui eu que escrevi. Mas foi sim).
A boca é linda quando é de mulher que tem boca linda. Fora disso, nem sempre. A boca é muito rica de expressões, mas não se deve confundi-la com a chamada boca rica. (Mordomia, negociatas, pregão de ações da Vale do Rio Doce aos milhões etc.) A boca de que estou falando, aliás, escrevendo, pode ser alegre, amarga, ameaçadora, sensual, deprimida, fria, sei lá o quê. Uma boca pode variar muito de expressão e mesmo não ter nenhuma. Uma das bocas mais gozadas que eu já vi foi a boca–de-chupar-ovo, uma boquinha de nada, da minha tia Zuleica. Se fosse um pouquinha mais apertada, eu queria ver ela se alimentando – por onde? Mas esta boca está fora da moda, só aparece no jornal nos retratos das melindrosas de 1928, que faziam a boca ainda menor desenhando o contorno com o batom. Os lábios ficavam de fora, de longe.
Estou lendo escondido as poesias de Gregório de Matos. Dizem que ele tinha o apelido de Boca do Inferno por causa dos negócios que escrevia e que eram infernais. Infernais no tempo dele, pois na rua e em toda parte já escutei coisas muito mais cabeludas, xii!…
Toquinho canta uma letra que fala em boca da noite, acho que ele queria falar no anoitecer, É bonito, mas não consigo imaginar essa boca na cara da noite. Sou mais a boca do dia, que não sei se alguém já teve ideia de falar nela, mas o amanhecer engolindo a escuridão da noite é mais legal que o anoitecer papando os restos do dia.
Boca por boca, não ando atrás da boca-livre, que aliás nunca passou perto de mim, e só um grupo consegue, os privilegiados. Se a boca fosse livre para todos, então a vida seria melhor. É a tal história: quanta gente fazendo boquinha pra conseguir o quê? Nada. E com quatro ou cinco bocas em casa pra sustentar.
Diz-se que o uso do cachimbo faz a boca torta, e eu pergunto: por que não botar o cachimbo ora no outro canto da boca, pro torto endireitar? Se o vatapá põe a gente de água na boca, me expliquem por que, depois de comer, o cara pede um copo d’ água.
Gente que não admite discussão nem leva desaforo para casa manda logo calar a boca. Mas já vi gente dando palmadinha na própria boca e dizendo “Cala-te, boca”. E ela obedece. Às vezes já é tarde, a boca disse uma besteira inconveniente , e o jeito é o cara se lastimar , com cara de missa de sétimo dia : “Ai, boca, que tal disseste”!
E assim, de boca em boca, vai correndo o dito maldito. Me disseram que um cara bom de discurso, palavreado fácil , como certos deputados e prefeitos por aí, merece o título de boca de ouro. Fala tão bonito que a gente vê barrinhas de ouro saltarem da língua dele. Mas é só de mentirinha. Esse ouro não melhora a sina do povo nem a nossa dívida externa, que é uma boca larga imensa, engolindo todas as reservas da gente. E contra essa história de inflação, custo de vida e tal e coisa, nem adianta mesmo botar a boca no trombone. Os de lá de cima fazem boca-de–siri- ou , senão, boca de defunto , porque, como advertia o saudoso Ponte Preta , siri , mesmo sem boca , já está falando.
E eu faço igual, além do mais porque já não estou em idade de fazer redação em colégio.



(ANDRADE, Carlos Drummond de. Moça deitada na grama. Rio de Janeiro: Record, 1987. p.17-9.)


2. Narrador-observador: 

O espelho

Esboço de uma nova teoria da alma humana

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.
Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna.
Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu: - Pensando bem, talvez o senhor tenha razão. Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos.
 - Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...

(...)
(Joaquim Maria Machado de Assis)
Concluir a leitura desse texto:


3. Narrador-onisciente:
                                                                           Amor

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.
Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.
O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.
O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.
A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.
(...)
(Clarice Lispector)

Concluir leitura desse texto:

PESQUISA: A teoria do foco narrativo: Leia tudo! Escreve melhor que sabe  detalhes sobre                                     esse elemento da narrativa:



Sucesso no trabalho!

Prof. Delinha 

Nenhum comentário:

Postar um comentário