Polissemia ‘vs.’ Homonímia (adaptado):
Pergunta: Nas
frases «Ele sentiu o corpo a tremer» e «Era um corpo estranho», a palavra
"corpo" é, obviamente, polissêmica. Mas, neste caso, pode
considerar-se que também existe homonímia?
Resposta: É
difícil estabelecer uma fronteira nítida entre polissemia e homonímia. Nos
exemplos em apreço, é nítido que há uma relação semântica na história e na atualidade
entre corpo, «organismo», e corpo, «volume, objeto». A
TLEBS (subdomínio semântica lexical) define estes termos assim:
«[Polissemia é a] propriedade
semântica das unidades lexicais ou dos morfemas que possuem mais do que um
significado.»
«[Homonímia é a] propriedade
característica de duas unidades básicas que partilham a mesma grafia e/ou a
mesma pronúncia, mas que conservam significados distintos.»
O problema destas definições é o uso
de distinto. Se, por exemplo, considerarmos as expressões «operação
cirúrgica» e «operação financeira», diremos, por um lado, que as duas operações correspondem
a significados diferentes, ainda que próximos, de uma única palavra – operação.
Por outro lado, é também possível afirmar que a primeira operação é
uma palavra homônima da outra, porque os respectivos significados são realmente
diferentes (referem-se a processos diferentes em contextos diferentes), apesar
da mesma grafia e da mesma pronúncia. Perante este problema, a diferença entre polissemia e homonímia parece
irrelevante. O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa permite
definir melhor o contraste entre os dois termos com um comentário à noção
associada a polissemia:
«a polissemia é um fenômeno comum nas
línguas naturais, são raras as palavras que não a apresentam; difere da
homonímia por ser a mesma palavra, e não palavras com origens diferentes que
convergiram foneticamente; as causas da polissemia são: 1) os usos
figurados, por metáfora ou metonímia, por extensão de sentido, analogia etc.; 2)
empréstimo de acepção que a palavra tem em outra língua.»
Quer dizer que na consideração da
homonímia tem relevo a história da palavra: a forma verbal mata (do
verbo matar) e o nome mata («bosque») são homônimos,
porque, grafia e pronúncia à parte, não há relação direta entre elas, nem
semântica nem historicamente (etimologicamente). No âmbito da homonímia,
poderíamos incluir também a homofonia, como propriedade semântica de duas
unidades que têm a mesma forma fonética mas grafia e significados diferentes.
Refiram-se como exemplo os casos de coser (roupa) e cozer (carne),
que acabaram por ter a mesma pronúncia, mas que têm origem histórica diferente
e continuam a designar atividades diferentes.
Reservaremos então o termo polissemia para
a afinidade semântica e etimológica entre diferentes usos de uma mesma forma
gráfica e fonética. Voltando à palavra operação, diremos que é ela
que ocorre quer em «operação cirúrgica» quer em «operação financeira»,
assumindo sentidos diferentes, é certo, mas permitindo que entre estes exista
uma relação próxima: uma «operação cirúrgica» e uma «operação financeira»
incluem operação, que evoluiu do latim ‘operatione’; além disso,
ambas as operações conservam as noções de «trabalho», «obra»
que surgem como dimensões estruturantes da significação de operação.
Esta distinção apenas pode ser entendida
como uma proposta, porque o recurso a dicionários mostra que não há consenso
quanto aos critérios que definem a polissemia de uma unidade lexical e a
homonímia entre duas palavras. Mesmo assim, espero que seja útil, mais como um
ponto de partida e menos como um contraste có[ô]modo mas pouco fiel ao
imbricamento destes conceitos.
Por: Carlos Pinto (Portugal)
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