PARTE VIII: O ENTRETEXTO NO LITERÁRIO
Consideremos, agora, alguns aspectos relacionados à tensão que se segue à leitura de um texto literário, como o que acabamos de ler, e que chamamos, antes, de entretexto.
A literatura, como as demais artes, começou como um ritual mágico, de fundo religioso; buscando representar, principalmente por meio da dança, as atribulações e as peripécias do dia. Lembremo-nos de que se tratava de sociedades de coletores-caçadores.
Por meio desses ritos, em que os movimentos do corpo imitavam o dos animais e da caça, os “artistas” não só narravam o cotidiano como também reviviam as suas próprias dificuldades e perigos.
Assim, esses rituais tinham duas funções básicas; de um lado, ensinavam aos outros como superar as dificuldades da coleta de alimentos e, por outro, repetindo o sofrimento, de um certo modo, superavam-no.
Podemos, então, dizer que literatura e as artes começam, na vida humana, realizando de modo mágico e religioso duas funções: mimesis e catarsis.
Por mimesis entende-se a imitação, isto é, a repetição daquilo que a natureza mostra, mesmo sabendo que ela é irrepetível, por isso não é propriamente uma cópia, mas uma representação: uma apresentação outra vez. Por catarsis compreende-se a necessidade de repetir os fatos do cotidiano para superar as contradições que eles contêm. Vimos isto em Aristóteles.
As duas formas são inseparáveis e constituem a essência mesma da obra de arte.
Das duas formas esquematicamente apresentadas, a catarsis é que nos interessa no texto que acabamos de ler.
Por catarsis entende-se, então, um ritual de superação das contradições, isto é, dos desejos frustrados, das emoções reprimidas que se liberam, e portanto se ajustam, quando se liberam.
A catarsis era, originalmente, sempre entre os gregos, uma forma religiosa, no sentido de favorecer o equilíbrio (os gregos chamavam DIKÊ) tão desejável para a condição humana.
A obra literária, no caso a tragédia, representada como um ritual religioso, servia para evocar o terror e a piedade na platéia e, desse modo, fazer com que cada espectador revivesse a dor, o horror, o sofrimento da personagem e assim liberasse, também, suas próprias dores.
Como tudo era uma forma de fingimento, o espectador saia do teatro livre de seus próprios terrores e se tornava útil à vida coletiva.
Mas para que a catarsis seja bem sucedida, exige-se que a platéia se identifique com uma personagem, normalmente o herói trágico, através do qual ela sente e repete o sofrimento dele.
Então, os processos de identificação com um personagem é que permitem ao espectador – ou ao leitor – praticamente reconhecer-se dentro da narrativa, por meio de uma identificação com uma das personagens, ou mais de uma.
Os sutis mecanismos de catarsis normalmente são sentidos pelo espectador não a partir de uma reflexão racional sobre o que se passa na história, mas como um sentimento de solidariedade ao personagem, quase que exclusivamente como um dado da emoção e do sentimento. O leitor, no caso do texto, ou o espectador, no caso do teatro, do cinema ou da televisão, praticamente mergulha na narrativa, sentindo simpatia (que quer dizer “com a mesma paixão”) por um ou mais personagem e antipatia (isto é: “paixão contrária”) acerca de outros. Desse modo, pelo amor e pela recusa, o leitor (ou espectador) deixa extravasar seus próprios sentimentos e encontra uma espécie de alívio para suas próprias emoções.
Quando assistimos a um filme e choramos de emoção ou gritamos de medo ou sentimos um imenso terror ou mesmo indignação estamos sendo submetidos ao processo da catarsis. Normalmente, dependendo de nossa sensibilidade e das situações evocadas, de nada adianta tentar evitar a emoção, pois ela é maior do que nossa capacidade de retê-la ou mesmo compreendê-la. Há mesmo quem afirme, como os românticos, que a principal função da arte é a catársis.
Ainda imaginando um leitor desarmado, sem as habilidades básicas para a leitura de um texto literário, é interessante discutir a categoria de autor e narrador que, obviamente, não são a mesma coisa.
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