quarta-feira, 24 de novembro de 2010

PARTE VI: HABILIDADES ESPECÍFICAS DE LEITURA DO POÉTICO:

Imagino, para ser didático, as seguintes habilidades:

1- Acervo semântico compartilhado

O idioma do texto necessita ser acessível ao leitor, caso contrário a mensagem torna-se ruído. Isto exige o habito da pesquisa filológica, da consulta a dicionários e de um certo treinamento em nosso métier. A vida das palavras, como todos sabemos, é um fascinante universo de jogos de sentido, porque envolve idioletos, registros, dialetos, enfim, aspectos das variações lingüísticas. Imaginemos a aventura empolgante de se defrontar com uma literatura de Guimarães Rosa, por exemplo.

2- Defasagem espaço-temporal

O sentido é uma tensão entre Ser e Tempo. O texto pode ser a expressão de uma temporalidade objetivamente distante de nós, no entanto, ontologicamente, o tempo é sempre unitário. O distante é muitas vezes o muito próximo. Muitos textos, embora produzidos em contextos práticos distantes do leitor, dele se aproximam justamente em virtude desta presentificação que ignora a linearidade temporal. Presente, passado e futuro pouco significam, exceto na condição de referências espaço--temporais.

3- Reconstrução das sensibilidades

T.S Elliot costumava dizer que o mais difícil na leitura de um poema não é reconstruir o sentido, mas a sensibilidade, especialmente porque não se educam mais os sentimentos. A comunhão necessária entre as motivações emocionais do autor e a sensibilidade do leitor constitui um dos mais difíceis problemas a serem enfrentados. Como educar a sensibilidade de um leitor numa sociedade que constrói suas sensibilidades por meio dos programas de televisão, a maioria de péssima qualidade? Esta sintonia, que os alemães chamam de Stimmung, parece depender do currículo familiar, da formação, do gosto desde a primeira infância, portanto, quando recebemos nossos jovens em sala de aula, a maioria está perdida para esta habilidade.

Não sei se este fatalismo cabe, mas temos também testemunho de leitores autodidatas que conseguiram desenvolver fina sensibilidade, às custas de esforço pessoal. É o caso clássico de Machado de Assis.

Tenho obtido alguns resultados positivos com turmas de letras, buscando desenvolver exercícios de meditação, de sensibilização, com a ajuda de disciplinas como arte e educação. Acho no entanto que esta é uma tarefa multidisciplinar, envolvendo áreas da psicologia, da pedagogia, da lingüística e mesmo da filosofia. Podemos organizar um grande esforço no sentido de criar uma disciplina de estude com mais cuidado estas questões.

4- Experiências compartilhadas

Todo leitor quer contar e dividir o que leu, sobretudo quando o entretexto radicaliza carências de sua vida pessoal. Se somos o que nos falta, o texto é como a paixão e o amor: precisamos do outro paradisíaco, já que o paraíso é o que nos fala do que não temos ou somos. Compartilhar e verbalizar o que diz o texto, não importa em que nível, é o começo do prazer do texto. Também sei que alguém vai me indagar como fazer isto numa classe com 80 alunos. Eu não sei, mas ainda que vire um monólogo -- o do professor embevecido -- existirá uma certa reverência, se houver sinceridade. Há uma regra: não tenham medo do ridículo, professor de leitura é mesmo um tipo meio maluquinho.

5- O prazer do texto

É este o ponto de chegada, o nosso Telos. Borges, o grande Borges, dizia não compreender a prática da leitura obrigatória, para ele soava como um absurdo. Ler é uma expressão refinada do desejo, é um erotismo, só pode existir como prazer. O livro de Barthes -- O prazer do texto --é, depois de quase 40 anos, um texto indispensável. Quando vislumbrarmos em nosso aluno aquele gosto pela leitura -- sabor mesmo, sabor físico, como saber é sabor -- percebemos como ele toca no livro, como ele busca o odor de livro novo, como acaricia a capa, detém o peso, sente a fusão de mineral e vegetal que é a coisa livro. O prazer do texto leva à paixão de ler. Como toda paixão, é punida, como aconteceu com aquele leitor paradigmático, um certo Alonso Quijano, que viveu trancado em sua biblioteca, durante 35 anos e só saiu para viver o absurdo de ser Dom Quixote.

Porém não importa. O prazer de ler, quando acontece, compromete corpo e espírito e a solidão se transmuta em longas conversações com mentes brilhantes que podemos convocar sempre que temos vontade. Existe prazer maior? O que é uma biblioteca senão um depósito de vozes e almas prontas para serem convocadas?

Não estaria completa esta conversação se não sugeríssemos aos futuros professores e jovens colegas algumas pistas de como começar a aventura de formar leitores de literatura.

Sugiro começar desfazendo algumas confusões que o leitor leigo não é capaz de desfazer. Esclareço que os próximos parágrafos são o resultado de aulas para turmas do ensino médio.

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