quarta-feira, 24 de novembro de 2010

INTERPRETAÇÃO DE TEXTO LITERÁRIO

PARTE I: CAPACIDADE HUMANA DE COMPREENDER TEXTOS

O esforço de compreender e comunicar, na verdade operações intercambiáveis, é que permitiu o salto da natureza para a cultura, que nos possibilitou a condição humana.

Comecemos pelo conforto de declarar a impossibilidade de circunscrever o ato da leitura e compreensão de um texto, supostamente literário ou não, em uma fórmula fechada ou modelo, ou modelagens. Esta tentativa, exercida à exaustão nos anos 1970, sob a rubrica do formalismo e do estruturalismo, redundou inútil, principalmente pelo seu fracasso em deixar de lado a complexidade do conflito das interpretações.

Para oferecer um breve panorama do estado da arte na questão proposta, é interessante partir de algumas obviedades em torno da proposição descrita no título desse artigo.

Um texto literário é, fundamentalmente, uma comunicação, no sentido daquela vontade de saber que move o céu e as estrelas, e que Dante chamou de AMOR. Provavelmente, sob o solo comum da linguagem, o homem, a única espécie capaz de organizar uma língua e com ela exercitar a comunicabilidade, elaborou o mais extraordinário e complexo instrumento de transmissão de vida e cultura: a linguagem.

Permanece obscuro o processo neuroquímico que viabilizou esse milagre. Talvez um dia, com o espetacular avanço das neurociências, possamos ainda saber como isso se deu, ou talvez nunca venhamos a saber, porque esse enigma está muito mais próximo da origem do universo, da vida e do homem, do que sonha nossa vã filosofia.

Permanece, no entanto, o fato de que podemos perceber, independente de fatores culturais, sociais ou econômicos, a existência deste refinado operador comunitário, instrumento de comunhão, chamado linguagem. E porque temos este dom, expressamos certa vontade de comunicar, como exercemos certa vontade de saber.

A espécie humana é inquieta desde sempre. Um homem talvez não, mas a espécie, sim. Jamais aceitou os limites que lhe impôs a natureza e superou todos eles com próteses engendradas por uma espécie de destino. Assim, superou os limites do corpo, do espaço e, como tudo é possível, poderá superar a única variável que ainda não controla: o tempo.

Sabemos também que a mais elaborada operação mental produzida pelo Homo Sapiens foi a transcendência, a invenção da vida após a morte, a criação do além, das religiões e dos Deuses, como resposta ao enigma da finitude.

Assim, o discurso com que nossos ancestrais inventaram o Além, sob a forma de orações, magias, mitos, rituais, foram os primeiros discursos propriamente literários, no sentido de que se fundaram na vontade de comunicar e de saber acerca do mistério que envolve nossa origem e fim.

Comunicar aos outros as visões do Paraíso sempre exigiu o que Coleridge chamou Suspension of disbelief, a suspensão de nossa capacidade de desacreditar, sugerindo ao ouvinte um princípio fundamental: a exigência da veracidade. Não de ser verdadeiro, mas de ser veraz, de ser sincero em sua crença e aceitar o discurso como uma verdade.

Aristóteles, que escreveu a suma poética de seu tempo, estabeleceu, de princípio, a diferença entre verdade histórica e verdade poética, atribuindo à primeira um sentido testemunhal de veracidade, com o famoso princípio do acontecido. Já para a verdade poética, o Filósofo proclamou o princípio da verossimilhança: o que poderia ter acontecido.

A oposição formal de que se serviu, o acontecido em contraste com o que poderia ter acontecido, pôde re-introduzir um conceito de vontade. No acontecido existe a vontade de saber, de classificar, de formalizar. No verossímil, no espaço do poderia ter acontecido, abre-se o território de algo que Aristóteles nunca pronunciou, porque os Gregos desconheciam: a Vontade de Saber como instância de um sujeito. Freud denominou de Desejo e inventou uma ciência para interpretar este aspecto: a psicanálise. Afinal, o que é a psicanálise senão a ciência do desejo?

Alguém que conta ou narra uma invenção da memória exerce esse fascínio essencial ou demasiadamente humano: a literatura ou, como pretendia o Estagirita, a poética.

A transcendência introduzida pela espécie humana, e só por ela, ainda nos fascina e nos intriga. Mas certamente sem linguagem, uma e outra seriam impossíveis e o que chamamos humano, possivelmente, jamais existiria.

Não li, até hoje, nada tão radicalmente revelador para o fenômeno literário do que as reflexões de Aristóteles, sobretudo, quando associa as três instâncias fundadoras do literário: a verossimilhança, a mimesis e a catarsis.

Ao longo das reflexões sobre as teorias literárias, dos Gregos aos pós-estruturalistas, parece ter havido sempre certa tendência de buscar uma fórmula definitiva em que se deveria enclausurar o fenômeno literário. Aí me parece ter havido um engano: o literário não se deixa enclausurar, por isso não se explica, se interpreta.

Esse equívoco metodológico, não o cometeu nem a Hermenêutica nem a Fenomenologia, ambas aparentadas. A bem da verdade, foi justamente a fenomenologia, sobretudo a de Husserl, quem levantou a hipótese dos objetos intencionais, oferecendo a possibilidade de uma razão mediada. Eu escolho as coisas, mas as coisas também me escolhem. Depois, Heidegger nos legou a possibilidade mais ampla e aberta de leitura poética com sua afinadíssima ontologia.

É justamente esse aspecto que pretendo tomar como ponto de partida. Não que eu negue a filosofia da práxis em sua vertente relacionada à teoria crítica, mas suponho poder existir um território de compartilhamento entre a hermenêutica e a teoria crítica.

(Texto adaptado)

Nenhum comentário:

Postar um comentário