‘A experiência da juventude é decisiva
para o escritor’
Enquanto conversa comigo, no café de uma livraria paulistana, a
voz serena do escritor Milton Hatoum vai se animando e um sorriso treloso
explicita a excitação de relembrar momentos que marcaram sua juventude.
Filho de imigrantes libaneses, Milton partiu de Manaus aos 15
anos, rumo à capital federal, “se perder um pouco”. Foi aprovado em um colégio-modelo
da Universidade de Brasília, onde estudavam também filhos de políticos e
poderosos da República. Fernando Collor era aluno do mesmo colégio, seu
contemporâneo, com a devida ressalva de que pertenciam a chapas opostas. Foi
lá, conta o amazonense, durante os repressivos anos do fim da década de
60, que tudo se iluminou para ele do
ponto de vista da leitura, do ensino e da formação política.
Nesta entrevista, Hatoum não esconde sua repulsa por “caretices e
dogmatismo”, principalmente ao falar dos políticos brasileiros, e revive esse
importante período da sua vida – da escola pública, passando pelo Ensino Médio
em Brasília e pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, em São Paulo, onde se
formou. O autor de quatro romances (o mais conhecido, Dois Irmãos) conta também a sua experiência como leitor e fala
sobre seu sexto livro, sem pressa e data para ser publicado.
Carta
na Escola: O seu interesse pela literatura foi despertado na escola?
Milton Hatoum: A
experiência da infância e da juventude é decisiva para quem vai ou quer
escrever. Nessa experiência está incluída a de leitor. Por um lado, tive muita
sorte com meus professores e minha mãe, que me indicaram livros fundamentais.
Minha mãe era obcecada por Machado de Assis, escritor mal lido durante muito
tempo. Machado era interpretado como o escritor dos triângulos amorosos, e isso
excitava os leitores. Claro, a obra machadiana é muito mais complexa, pois fala
das contradições da nossa sociedade, da loucura, da crueldade da nossa elite e
do lado obscuro do homem. Um dia minha mãe comprou de um livreiro ambulante a
coleção das obras completas do Machado, uma edição de 1958, que guardo até
hoje. Por sorte, comecei a ler os contos. Tivesse lido os romances primeiro,
talvez odiasse Machado. É esse o erro que se faz na escola. Os grandes romances
machadianos são muito complexos, têm muitas nuances e uma dimensão simbólica e
histórica que está nas entrelinhas. A maioria dos jovens de 14 anos não vai
enfrentar essa dificuldade. Se me pedissem para opinar na política do MEC, eu
diria: distribuam um livro com uma seleção dos contos de Machado na biblioteca
de todas as escolas.
CE:
Qual conto machadiano leu primeiro?
MH: Foi Parasita Azul, de
Histórias da Meia-Noite. Fui atraído porque achava que haveria algo de
mistério, de terror. E não era nada disso. Era um conto machadiano, já dos
bons. Acho que Parasita Azul é um marco para os grandes contos do Machado na
década de 1880 e 1890. Fiquei fascinado. Fui lendo outros contos e pensava
“Como ele escreve bem, que clareza!” Ao mesmo tempo, na escola, os professores
trabalhavam com Graciliano Ramos, Jorge Amado e Erico Verissimo. Outro
professor trabalhou com Euclides (da Cunha), o que me irritou profundamente.
CE:
Por quê?
MH: Explodiram uma bomba
caseira no colégio, por travessura, e o castigo coletivo foi a leitura e o
fichamento de Os Sertões, cuja edição, de 1967, também guardei. Depois de ter
lido os contos do Machado e Vidas Secas e Infância, do Graciliano, fiquei um
pouco arrepiado com a linguagem do Euclides, muito retorcida, com um
vocabulário precioso. Foi um choque. Não quis saber do Euclides naquele momento.
CE:
Quando foi que o Euclides “te pegou”?
MH: Na escola, em 1967, só li
um trecho de A Luta, a meu ver, a melhor parte d’Os Sertões. Li o livro inteiro
quando já morava em São Paulo, depois de ter passado dois anos em Brasília. Li
também os ensaios amazônicos de À Margem da História, onde descobri um texto
maravilhoso, Judas Asvero, sobre os
seringueiros nordestinos no Alto-Purus. É um texto lindo, obra canônica na
literatura brasileira. Eu queria fazer uma tese de doutorado sobre esse relato
de três páginas
CE:
O castigo virou uma obsessão?
MH: E também um fascínio, pois
comecei a entender mais o Euclides, apesar dos seus erros políticos e da sua
ingenuidade. Ele era um positivista, acreditava no progresso e na
“civilização”, em oposição à “barbárie”. Essa oposição não existe. O
“progresso” e a ciência só fazem sentido se servirem à sociedade como um todo,
e não apenas a uma elite. Enfim, ele tinha assimilado todos os valores da
filosofia positivista do século XIX e, ao lado do Machado, seu contemporâneo,
ele é muito ingênuo. Machado não acreditava em nada disso.
CE:
A produção escrita veio junto com a sua imersão na leitura literária?
MH: Meu primeiro artigo, meio
poético, escrevi nessa época, para o jornal do grêmio estudantil do Colégio
Pedro II, em Manaus. Era um artigo sobre educação pública, clamando pela
qualidade de ensino, por uma boa biblioteca, salários justos para os
professores, tudo que se diz até hoje. O nome do jornal que, aliás, está no
Cinzas do Norte, era Elemento 106. Na época, havia 105 elementos na natureza…
Acho que eu estava numa caverna um pouco sombria e, em Brasília, tudo se iluminou do ponto de vista da
leitura e do ensino.
CE:
Com quantos anos foi para Brasília?
MH: Fui fazer o antigo
colegial da época, com 15 anos. Era um colégio de aplicação chamado Ciem
(Centro Integrado do Ensino Médio), que ficava na entrada do campus e pertencia
à Universidade de Brasília. Uma escola-modelo para 350 alunos e mais de 60
professores, um colégio para qual se deveria prestar um exame para entrar. Mas
só os caipiras prestavam. Os filhos de deputados e ministros, não.
CE:
Sua família continuou em Manaus?
MH: Vim sozinho. Queria me
aventurar, me perder um pouco. Brasília foi uma experiência e tanto. Política,
inclusive, porque caí no olho do furacão, em 1968.
CE:
Foi em Brasília que você deixou de ser um progressista?
MH: Nunca deixei de ser
progressista. Desconfio dos valores da civilização, esses valores do Ocidente.
Sou um progressista de esquerda, mas detesto qualquer dogmatismo e todo tipo de
caretice. Muitos traíram, se traíram. Não me arrependo de nada, de nenhuma
passeata ou pichação, de nenhuma pedra jogada contra a polícia, que torturava e
matava. A ditadura interrompeu brutalmente o processo democrático, esta é a
verdade. O ano de 68 foi o mais violento em Brasília. Foi um inferno, houve
invasões durante todo o ano na universidade, prisões, expulsões, perseguições.
Brasília teve o movimento estudantil mais radical do Brasil e as pessoas
desconhecem isso. Eu vivi um pouco isso e vivi também o ambiente do colégio,
que era incrível. Era um laboratório criado por Darcy Ribeiro e Anísio
Teixeira. Li muita coisa de literatura brasileira, francesa, italiana…
CE:
Já pensava em ser escritor?
MH: Não. Eu escrevia poesia e
tinha um diário. Naquela época, não podíamos falar, então escrevíamos. Toda a
nossa energia ia para a escrita, para o sexo e outras coisas. Brasília foi isso
também, muita droga. Foi um momento de liberação de tudo. Eu intuí que aquilo
não ia dar certo e vim para São Paulo em 1970. Em 71, a ditadura fechou o meu
colégio em Brasília. O Collor estava lá, eu era do primeiro ano e ele, do
terceiro.
CE:
Como era o ex-presidente na escola?
MH: Diziam que ele desfilava
para as festas da primeira dama, Iolanda (mulher do presidente Arthur da Costa
e Silva – 67 a 69), para arrecadar fundos. Diziam também que ele era lindo. Eu
e meus amigos o considerávamos um mauricinho, um bofe cafona, e um baita de um
reacionário. Já naquela época ele era pedante e comandava uma chapa de direita.
Lamentável que a esquerda, hoje, esteja aliada com o Collor e outras figuras
autoritárias.
CE:
Há um movimento de criação de cursos de formação de escritores no Brasil. É
possível ensinar a escrever literatura?
MH: Acho
que não. É uma técnica que veio dos Estados Unidos, onde muitos escritores
vivem disso. Mas não acredito que você forme um escritor. É preciso ter talento
para escrever. O que eu acredito é que a leitura crítica é fundamental para
quem quer ser escritor. Não há lugar para o leitor ingênuo entre os que querem
escrever.
CE:
Qual foi sua formação crítica de leitor?
MH: Eu fugia da FAU para
assistir aos cursos de teoria literária do Davi Arrigucci, da Leyla
Perrone-Moisés e outros grandes mestres. Esses cursos me ajudaram a pensar na
literatura. Não que isso seja obrigatório. Guimarães Rosa nunca assistiu a uma
aula, mas era um gênio, sabia tudo sobre romance e conto. Era um grande leitor.
A FAU também foi uma escola formadora e me ajudou a refletir sobre as cidades
brasileiras e a habitação popular, cujos projetos ainda são vergonhosos no
Brasil, como se o povo não merecesse moradia digna. A FAU era bem maluca, e
diferente do que é hoje. Tudo ficou mais convencional.
CE:
O seu olhar de arquiteto está muito presente na maneira como você explora a
cidade. Isso é intencional?
MH: Acho que sim. Foi
introjetado na minha vivência com a arquitetura, nas minhas leituras sobre
arquitetura e na minha vivência na cidade. O espaço é importante num romance,
mas não como descrição, e sim como um elemento constitutivo da trama e da vida
dos personagens.
CE:
Manaus é predominante entre as cidades dos seus romances. Que tipo de
sentimento sua cidade natal evoca?
MH: Hoje é uma cidade quase
irreconhecível para mim. Quando se trata da memória do espaço, as cidades da
América Latina têm uma vida curta, vão se sobrepondo umas às outras, se
destruindo e se reconstruindo a cada uma ou duas décadas. Isso, por um lado,
aponta para um dinamismo econômico e, por outro, para uma destruição da memória
urbana. Manaus poderia ser uma cidade maravilhosa, mas está totalmente
desfigurada, feia, e sem árvores. Uma cidade equatorial sem sombras.
CE:
Você já afirmou não conseguir escrever sobre o passado recente. Como se dá esse
processo de criação e memória?
MH: O passado recente está
muito próximo do circunstancial. Uma distância longa do tempo é mais propícia à
literatura porque você não lembra com precisão. O que há de nebuloso no passado
move a nossa memória, que é irmã siamesa da imaginação.
CE:
Sobre o que falará o romance que você está escrevendo?
MH: Ele evoca o período em que
vivi na Europa. É um romance ambientado em Paris, com histórias sobre exílio,
expatriação e tradução. É narrado por uma tradutora franco-brasileira. Tem
também um pouco da minha experiência de Brasília e São Paulo. Fico
particularmente emocionado quando escrevo. Estou falando com você, e, ao mesmo
tempo, meu coração e meu pensamento disparam, mergulham nas lembranças
perdidas, que reaparecem por meio da linguagem. No romance também ocorre o alumbramento, esse belo nome que Manuel
Bandeira dava ao súbito surgimento da imagem poética.
CE:
Tem previsão para o lançamento?
MH: Pensei que terminaria em
fevereiro, mas meu editor fez várias observações relevantes, decidi retomar o
trabalho e reescrever várias partes. Você pode matar um livro se for picado
pela pressa e pela vaidade. Faz tempo joguei a vaidade para o ar. Eu sei que
tem a Feira de Frankfurt e o Brasil vai ser o país homenageado em 2013. Seria
maravilhoso lançar este ano. Mas não adianta forçar. O romance é uma arte que
exige obstinação e uma entrega total, que é a paixão pela linguagem. Além
disso, acho que já escrevi muito. Cinco livros! Tem gente que publica mais de
30. É inimaginável para mim.
FONTE: CARTA CAPITAL/ CARTA ESCOLA
OBS.: Esse é um bom exemplo de que ler afeta, positivamente, a nossa vida para o resto dela...
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