O menino que carregava água na peneira
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava
água na peneira.
A mãe disse que carregar água na
peneira era o mesmo que roubar um vento
e sair correndo com ele para mostrar
aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar
espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa
sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino gostava
mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até
infinitos.
Com o tempo aquele menino que era
cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na
peneira
Com o tempo descobriu que escrever
seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz
de ser
noviça, monge ou mendigo ao mesmo
tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as
palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um
pássaro botando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando
uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser
poeta.
Você vai carregar água na peneira a
vida toda.
Você vai encher os vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas vão te amar por seus
despropósitos
(Manoel de Barros)
MINHA CIDADE
Goiás, minha cidade...
Eu sou aquela amorosa
de tuas ruas estreitas,
curtas,
indecisas,
entrando,
saindo
uma das outras.
Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.
Eu sou aquela mulher
que ficou velha,
esquecida,
nos teus larguinhos e nos teus becos tristes,
contando estórias,
fazendo adivinhação.
Cantando teu passado.
Cantando teu futuro.
Eu vivo nas tuas igrejas
e sobrados
e telhados
e paredes.
Eu sou aquele teu velho muro
verde de avencas
onde se debruça
um antigo jasmineiro,
cheiroso
na ruinha pobre e suja.
Eu sou estas casas
encostadas
cochichando umas com as outras.
Eu sou a ramada
dessas árvores,
sem nome e sem valia,
sem flores e sem frutos,
de que gostam
a gente cansada e os pássaros vadios.
Eu sou o caule
dessas trepadeiras sem classe,
nascidas na frincha das pedras:
Bravias.
Renitentes.
Indomáveis.
Cortadas.
Maltratadas.
Pisadas.
E renascendo.
Eu sou a dureza desses morros,
revestidos,
enflorados,
lascados a machado,
lanhados, lacerados.
Queimados pelo fogo.
Pastados.
Calcinados
e renascidos.
Minha vida,
meus sentidos,
minha estética,
todas as virações
de minha sensibilidade de mulher,
têm, aqui, suas raízes.
Eu sou a menina feia
da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.
(Cora Coralina)
Nenhum comentário:
Postar um comentário